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CONTRIBUIÇÕES DO GEL AO DESENVOLVIMENTO DA LINGUÍSTICA BRASILEIRA



Ataliba T. de Castilho
FFCL de Marília
Universidade Estadual de Campinas
Universidade de São Paulo
Pesquisador do CNPq



O Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo é hoje um sucesso, com seus mais de dois mil associados, regularidade absoluta na realização de seminários e na publicação dos Estudos Linguísticos [Anais do GEL] e da Revista do GEL.


A série dos Estudos Linguísticos foi criada em1978 por iniciativa de Rodolfo Ilari, para publicar as conferências e as comunicações apresentadas nos seminários. Publicada inicialmente em papel, a partir de 2001 a série saiu em cd-rom. Foram publicados até aqui 39 volumes, muitos deles com vários tomos. A Revista do GEL publicou um volume experimental em 2002, o número 1 saiu em 2004, estando atualmente no volume 7, de 2010.


Só quem já editou revistas científicas sabe o enorme esforço que custa mantê-las, assegurando sua regularidade e evitando o conhecido ?mal dos três números? que vitima grande parte de nossas revistas.


Por ocasião deste 59º. Seminário, a Diretoria disponibilizou ambas as publicações no sítio do GEL. Trata-se de um esforço extraordinário da atual Diretoria, que assegurará uma circulação mais efetiva da produção científica apresentada aos nossos seminários.


Lembremos também a permanente vocação do GEL em pôr em contacto pesquisadores experimentados com jovens estudantes de graduação e pós-graduação, que apresentam seus primeiros trabalhos nos seminários, de onde decolam para a ABRALIN e para a ANPOLL e, em muitos casos, para os congressos internacionais.


O GEL foi e tem sido uma iniciativa claramente tomada no interior do Estado de São Paulo, e um subproduto talvez inesperado da política dos governadores, atentos ao desenvolvimento econômico e cultural do interior paulista. Neste 59º. Seminário, será de interesse rememorar as condições e motivações de sua criação. Começo pela política do Estado e depois passo à política científica desencadeada pelas faculdades hoje reunidas na Universidade Estadual Paulista (UNESP).


Um professor da Universidade de São Paulo, o governador Carlos Alberto Carvalho Pinto, pôs em marcha na segunda metade dos anos 50 o propósito de incorporar o interior ao progresso da capital. Indústrias foram instaladas, estradas de rodagem rasgadas em nossa geografia e escolas de nível superior disseminadas por vários municípios.


As faculdades foram primeiramente administradas pela Coordenadoria Estadual de Ensino Superior, órgão filiado à Secretaria da Educação. Após 1976 elas foram reunidas na UNESP, surgindo assim a terceira universidade oficial paulista.


Para entender as motivações que fundamentam o GEL, precisaremos concentrar nossa atenção no Departamento de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília. Desse departamento partiu em 1967 a proposta de criação de uma sociedade regional e de uma sociedade nacional de Linguística, de que resultaram o GEL e a Associação Brasileira de Linguística, tendo ambas completado 40 anos em 2009.


Passei a integrar esse departamento em 1962. Em nossa jovem Faculdade, havia liberdade para a condução do ensino e da pesquisa, dinheiro para comprar livros e convidar professores do país e do exterior para proferir conferências e interagir com seus professores e alunos. Havia igualmente uma tremenda animação em fazer algo diferente do que ocorria nos dois grandes centros de Letras daquele tempo, a Universidade de São Paulo, em que tínhamos em grande parte obtido a licenciatura, e a Universidade Nacional do Rio de Janeiro, hoje UFRJ.


Foi essa vontade de realizar coisas novas que agitou o Departamento de Letras de Marília. Estávamos naqueles tempos à busca de nossa identidade.


O pessoal de São Paulo e do Rio de Janeiro concentrava-se nos estudos diacrônicos, de corte neogramatical, focalizando a România Velha? Nós iríamos atrás da sincronia, cortejando o Estruturalismo, atentos à România Nova, focados no mundo americano.


?Eles? se concentravam na língua escrita? Nós iríamos atrás da oralidade ? mesmo que, naquela altura, não fizéssemos a menor idéia do tamanho do desafio.


O Conselho Federal tinha incluído a Linguística no currículo mínimo dos cursos de Letras, e ?eles? ficavam fazendo cara de paisagem? Pois nós, do interior, já estávamos inteiramente apaixonados pela nova disciplina, e dela não desistiríamos nem sob tortura.


Para pôr as coisas em marcha, nosso projeto rebelde tratou primeiramente de entender que ciência era essa, que desafios ela lançava. Devoramos manuais de introdução à Linguística, não perdíamos os Seminários de orientação linguística para professores, uma iniciativa do Instituto Yázigi, e passamos a dar umas escapadinhas para os lados da França e dos Estados Unidos. Em segundo lugar, tratamos de convocar o I Seminário de Linguística de Marília, em 1967, para um debate mais amplo do assunto.


Hoje em dia, para organizar um seminário de Linguística, fazemos perguntas do tipo ?que orientação privilegiar?, ?quem convidar?, etc. Nada disso se punha naquele tempo.


Éramos tão poucos que resolvemos convidar todo mundo, escassamente uns doze linguistas, atribuindo uma tarefa a cada um deles: Joaquim Mattoso Câmara Jr. falaria sobre o Estruturalismo, Theodoro Henrique Maurer Jr. sobre a Linguística Histórica, Aryon Dall?Igna Rodrigues sobre a Linguística Indígena, Nelson Rossi sobre a Dialetologia, e nosso vizinho de Assis, Julio Garcia Morejón, sobre a Estilística. A prata da casa também foi convocada: Paulo A. Froehlich, o único linguista de carteirinha do grupo, com mestrado pela Georgetown University, tratou da Descrição linguística, Maria Tereza Biderman, recém-chegada de Strasbourg, falou sobre a Lexicologia, enquanto Enzo Del Carratore e eu mesmo atacamos de Onomasiologia no Léxico e na Sintaxe. O objetivo imediato do departamento era dar um balanço nas direções que essa ciência estava tomando no país, para fundamentar nossas opções de pesquisa.


O evento durou uma semana, os textos e os debates foram publicados no número 11 da revista Alfa, criada previamente pelo Departamento. Um tremendo sucesso! A propósito, a Alfa é hoje a Revista de Linguística da UNESP. Toda a coleção está disponibilizada em site próprio.


No encerramento do encontro, com todo mundo fazendo cara de quero mais, propus a criação de uma sociedade regional e de uma sociedade nacional de Linguística. Foi um ataque de patriotismo nacional e estadual, tudo ao mesmo tempo.


A ideia era que essas sociedades realizassem reuniões científicas regulares, como aquela que estava se encerrando. Qualquer ciência precisa de associações científicas, para manter acesa a curiosidade, para reunir estudiosos, ainda mais no caso da Linguística, uma ciência que no final dos anos 60 era nova entre nós. Em apenas três universidades ela havia conseguido visibilidade: na do Paraná, com Raul Farâni Mansur Guérios, na de São Paulo, com Theodoro Henrique Maurer Jr., e na do Rio de Janeiro, com Joaquim Mattoso Câmara Jr.


Aqui pelas Américas dispúnhamos nessa época do Programa Interamericano de Linguística e Ensino de Línguas (PILEI), hoje desaparecido (dizem que ocorreu uma mudança fonológica de pilei para pifei). Tínhamos também a Associação de Linguística e Filologia da América Latina (ALFAL), esta, felizmente, atuando com todo vigor.


O PILEI era uma entidade financiada pela Fundação Ford, que tinha por objetivo disseminar a ciência da linguagem a América Latina. Ele atuava à base de comissões de pesquisa que estimulavam a organização de projetos, e de seminários bianuais, em que eram debatidos os resultados desses projetos. Era um programa, não uma associação acadêmica, coisa fina. Ajudado por Rodolfo Ilari, organizei em 1980, na Unicamp, o V Instituto desse programa, seguido de um simpósio: Castilho (Org. 1984).


A ALFAL tinha sido criada em 1964, para agregar os latino-americanos, e por um bom tempo caminhou à sombra do PILEI. De novo com a ajuda decisiva de Rodolfo Ilari, organizei o IX Congresso Internacional dessa associação, na Unicamp, em 1990: Castilho / Ilari (Orgs. 1993/1998). Presidi-a entre 1999 e 2005, movido pelo objetivo de modernizar as práticas acadêmicas dessa sociedade, que, entretanto, tinha se tornado muito conservadora. Sonhei também com a aproximação das Linguísticas brasileira e hispano-americana, aprofundando uma proposta apresentada anteriormente num dos seminários do GEL: Castilho (2000, 2002, 2008). Continuo achando válidos os argumentos que fundamentaram aquela ação: brasileiros e hispano-americanos compartilhamos um território e uma herança cultural comuns, e precisamos preparar-nos mutuamente para a vivência global em que já estamos metidos.


Mas voltando a 1967, estava claro para nós do Departamento de Letras da FFCL de Marília que o Brasil precisava emparelhar-se a essas iniciativas. A idéia brotou espontaneamente no encerramento do I Seminário de Linguística de Marília, tendo sido aprovada ao término desse evento. Pedimos então ao Prof. Joaquim Mattoso Câmara que liderasse a coisa, o que ele fez de bom grado.


No começo de 1969, dois anos depois do seminário de Marília, PILEI e ALFAL se reuniram na USP, aquele para seu simpósio e instituto, esta para seu II Congresso internacional. Dois professores desempenharam um papel organizatório importante nessa ocasião: Joaquim Mattoso Câmara Jr. e Isaac Nicolau Salum.


Quanto à associação nacional, Joaquim Mattoso Câmara Jr. convidou os brasileiros presentes, mencionou a proposta feita em Marília, em 1967, e os debates havidos no Recife, em 1968, propondo a criação da Associação Brasileira de Linguística.


Aprovada formalmente a idéia, o candidato natural a primeiro Presidente era ele mesmo, ainda hoje o mais conhecido linguista brasileiro. Mas Mattoso presidia a ALFAL, e declinou. Foi então eleito seu braço direito no Programa de Pós-Graduação do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, o Prof. Aryon Dall?Igna Rodrigues. Infelizmente, esse colega não registrou a nova associação, deixou caducar o mandato da Diretoria, sem convocar novas eleições. Sobravam dois conselheiros ainda com mandato, o Prof. Nelson Rossi e eu mesmo. Num evento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que se realizava em Florianópolis, Nelson Rossi preparou a ressurreição da ABRALIN, organizando a eleição de nova Diretoria.


Foi então eleita a Profa. Ângela Vaz Leão, da UFMG, que também tinha participado do seminário de Marília. Ela foi, de fato, o primeiro Presidente da ABRALIN, fazendo o que deveria ter sido feito: o registro dessa associação, a organização de reuniões científicas, e a convocação de eleições, terminado seu mandato. Presidi essa associação de 1983 a 1985: Castilho / Altman (1994).


Quanto à associação regional, pedi na mesma oportunidade ao Prof. Isaac Nicolau Salum que reunisse os linguistas paulistas presentes, o que ele fez, explicando a importância de sua arregimentação no Estado.


Surgiu assim o Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo, ou GEL, palavra que até então designava uma bala de chupar. Fui seu primeiro presidente, de 1969 a 1971, e depois seu secretário, durante a presidência de Rodolfo Ilari, de 1978 a 1980.


O GEL é hoje a associação regional de Linguística mais dinâmica do país. A idéia de sua criação era tão oportuna, que logo outras associações regionais foram criadas à sua semelhança: o GELNE, o GELNO, o CELLIP, a ASSEL-Rio, entre outras. Para a história do GEL e da ABRALIN, nascidas juntas, ver Castilho / Altman (1995), Altman (2003). Seus seminários deram sempre abrigo aos projetos coletivos de investigação linguística, uma bela invenção brasileira.


Minhas memórias terminam por aqui. Eu não deveria falar sobre o que provavelmente nos espera. Afinal, diz o bom senso e o dicionário etimológico que as memórias cuidam do passado.


Mas não poderei me segurar nos tamancos sem confiar aqui à Diretoria do GEL e aos queridos associados uma forte preocupação sobre a qual tenho falado ultimamente. É o seguinte.


Quando o GEL foi criado, tivemos de nos preparar na ciência e produzir conhecimento linguístico sobre o Brasil. País multilíngue, pouco sabíamos sobre as línguas indígenas e sobre o português brasileiro ? para o qual ainda não tinha sido cunhada a sigla PB.


Muito esforço depois, dispomos hoje de um conhecimento notável sobre esses campos, embora ainda haja muito o que fazer. Está na hora de elaborar teorias com base nessa empiria toda. Está na hora de ingressar a Linguística brasileira em sua maioridade.


Vejo, infelizmente, que os linguistas brasileiros continuam aferrados a uma prática incontornável quarenta anos atrás: inspirar-se em alguma teoria gerada no espaço europeu ou norte-americano, e com base nela desenvolver suas pesquisas. Temos sido disciplinados aplicadores de teorias.


O GEL e a ABRALIN precisam com urgência promover a busca de miradas teóricas próprias. Deixo claro que fiquei velho, mas não xenófobo. Passei dez por cento de minha vida profissional estudando no exterior. Aprendi desde os tempos de Marília que nosso patrão, o Sr. Universitas, fez de nós uma raça desterritorializada.


Mas já é tempo de os linguistas brasileiros interpretarem os resultados obtidos ao longo de décadas de investigação, buscando as generalizações de que as teorias são feitas. Somos perfeitamente capazes disso. Nesse novo tempo, nossos linguistas se ombrearão aos colegas do exterior, desterrando de vez o espírito colonizado que ainda persiste em nossos meios científicos. Nessa altura, todo o enorme esforço das diretorias e dos associados do GEL e da ABRALIN terão feito sentido.



Referências bibliográficas


ALTMAN, Cristina (2003). A Pesquisa Lingüística no Brasil (1968-1988). São Paulo: Humanitas.

CASTILHO, Ataliba T. de (1984). Quinze anos de Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo. Estudos Lingüísticos 9: 10?20.

CASTILHO, Ataliba T. de (Org. 1984). Atas do V Instituto Interamericano de Lingüística [Proceedings of the Fifth Interamerican Institute of Linguistics]. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas.

CASTILHO, Ataliba T. de (1989). O Papel do Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo, de 1969 a 1971. Estudos Lingüísticos 18: 14?20.

CASTILHO, Ataliba T. de / ILARI, Rodolfo (Orgs. 1993/1998). Atas do IX Congresso Internacional da Associação de Lingüística e Filologia da América Latina: vol. I (Conferências), vol. II (Grupos de Trabalho), vols. III a V (Comunicações). Campinas: Instituto dos Estudos da Linguagem, 1993/1998.

CASTILHO, Ataliba T. de / ALTMAN, Cristina F. S. (1994). Para a História da Associação Brasileira de Lingüística. Boletim da ABRALIN 16: 1994, 21-37.

CASTILHO, Ataliba T. de / PRETI, Dino / RISSO, Mercedes S. / ABAURRE, Maria Bernardete M. (1995). GEL, novos caminhos. Estudos Lingüísticos 24: 19-35.

CASTILHO, Ataliba T. de (2000). 30 anos do GEL - novos compromissos científicos. Estudos Lingüísticos 29: 7-15.

CASTILHO, Ataliba T. de (2002). The Latin-American Association of Philology and Linguistics (ALFAL). Historiografia da Linguística Portuguesa VI: 2001: 57-70.

CASTILHO, Ataliba T. de (2008). Integrando a América Latina através da pesquisa linguística. Em: Dermeval da Hora / Rubens Marques de Lucena (Orgs.). Política Linguística na América Latina. João Pessoa: Idéia / Editora Universitária, pp. 141-147.