CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO DE IRONIA
Professora Solange Maria Moreira de CAMPOS (Centro
Universitário de Belo Horizonte/UNI-BH)
ABSTRACT: That article intends to discuss the
irony concept and your narrow relationships with the literary text. In him, the
ironic speech is served as the language to establish communication and it shows
not only the one that the text says, but the way as the text says what says.
KEYWORDS: irony, speech,
literature.
O eu que escreve sabe que não é exatamente aquele eu
que aparece como sujeito gramatical do texto; em outros termos: o eu-autor sabe
que o eu-narrador é apenas uma variante possível, uma sua possível máscara. (Alfredo Bosi)
Quando se analisa a complexidade da obra literária, a fim de que ela se manifeste e se torne uma evidência, busca-se a multiplicidade e a pluralidade de sentidos da palavra, como fenômeno lingüístico e literário, cujo objetivo é captar os elementos que propriamente conferem a ela um método de evidenciação.
A chave da obra está em ser o texto um exercício de
linguagem, como a própria expressão do ato criador, e que o depositário do
sentido da palavra é o leitor, a partir dos recursos da língua, a qual o
escritor pode manipular com a liberdade que julgar necessária.
Nas produções em que o fenômeno pesquisado é a ironia,
a escrita se transforma numa realização conjunta de autor e leitor, a provocar
um constante jogo de sedução e de persuasão. A palavra, território onde a
ironia se instala, edifica textos preocupados em apontar as perplexidades do
homem moderno, caracterizado pelo ausência de certezas absolutas. Outras
análises procuraram focalizar alguns eixos fundamentais que reforçam o caráter
de representação da obra, tematizando-se na relação entre as personagens ou
insinuando, no âmbito do discurso, a dimensão paradoxal da linguagem.
Ambigüidade dos sentidos construídos na relação
texto/leitor, recursos estilísticos da fragmentação, estratégias discursivas,
jogos de palavras, possibilidades e limitações da linguagem, desacordo entre
enunciado e enunciação, duplicidade das vozes narrativas, marcas de contradição
entre texto e contexto, texto e co-texto e texto/texto, são alguns dos
procedimentos constatados nos vários estudos em que a ironia se destaca
enquanto processo de comunicação. Em outros, a ironia se apresenta ora através
do uso pragmático que se faz da linguagem, com o objetivo de dominar, ora onde o autor mostra a rede, a teia, a
armadilha que constrói, nas quais a palavra é uma arma irônica.
Num balanço geral, é peculiaridade da ironia tomar
formas as mais diversas, que escapam a uma definição precisa, e, se combinada a
elementos não irônicos, pode pontuar a construção dos discursos e levar à
concretização de suas intenções.
Uma indagação sobre um conceito de ironia e suas
estreitas relações com o discurso literário conduz à percepção que a sua
presença na tessitura textual tem ficado à deriva, uma vez que, às vezes,
deixa-se de explorar esse recurso altamente enriquecedor, ignorando uma leitura
contrária à literal. Contudo, assim deve ser vista a ironia: um certo modo de
operar a linguagem, fazendo uso de diversos mecanismos. Carrega-a de
significados incongruentes, manifesta-se pela contradição entre as partes de um
enunciado ou "pode surgir pela omissão de um dado significante, que se
torna notável exatamente por sua ausência no enunciado" [1].
Cabe considerar que, na literatura, o discurso irônico
serve-se da linguagem para estabelecer a comunicação com o outro, no caso o
leitor, sujeito ativo, partícipe da construção do texto, e não apenas objeto de
recepção, e ainda mostrar não somente o que o texto diz, mas o modo como o
texto diz o que diz. Portanto, no discurso, a presença de incongruências e de
estranhamentos passa a indicar que no texto onde a ironia se faz presente há
insinuação de outro querer dizer ou, como afirma MUECKE(1978), prevalece a
habilidade de usar a mesma cadeia de palavras para dizer e desdizer o que se
está afirmando.
A palavra ironia
tem sido objeto de inúmeras interpretações. Como discurso literário ou
filosófico, apresenta duas vertentes: uma grega, eironeia, significa interrogação. É fator auxiliar do conhecimento.
Daí a ironia socrática. Outra latina, significa dissimulação: põe-se no
intervalo entre o que se diz e o que se quer significar. Mas é sobretudo um
jogo de palavras.
Conhecendo ou não o que é a ironia, não se pode,
contudo, fornecer facilmente os critérios para esse conhecimento; em outras
palavras, reconhecendo intuitivamente o que seja a ironia, não se encontra para
o fenômeno uma definição plenamente satisfatória. Não se pode deixar de
reconhecer, no entanto, que o conceito não fica esgotado nos diferentes termos
que, se o referem esporadicamente, não o substituem, pois limitam-lhe sempre as
aplicações.
Dada à dificuldade de tratamento e por seu caráter
fluido e nebuloso, desenvolveram-se diferentes perspectivas teóricas sobre a
ironia. Em muitas delas, faz-se a junção de ironia com ceticismo, chiste,
paradoxo, sátira, impostura, troça, sarcasmo[2],
paródia, litotes, perífrase, pastiche, mentira, considerando, ainda, o fato de
se falar de vários tipos de ironia: socrática, filosófica, romântica,
existencial, do destino, do acaso, trágica, cômica, ingênua, auto-ironia,
ironia retórica, humoresque ou humor.
Outro problema no seu estudo ocorre na perspectiva da
nomeação, cuja referência pode ser o meio, o objeto, o efeito, a técnica, o
praticante, a atitude ou o tom. Como se não bastasse, é fato que cada autor
utiliza a ironia a seu modo, estabelecendo as marcas de seu estilo pessoal e
intransferível. O termo, portanto, junta-se a muitos outros, sem contudo com
eles se confundir.
Enquanto figura, revela um estilo, uma atitude, um
tom, que persegue o objetivo de convencer de que, até na contradição, há uma
compatibilidade possível.
Mas esta é, parece-me, uma conseqüência última da ironia: a procura de uma síntese no que, objetivamente, apresenta-se como compatível. Expressão máxima dessa procura é a tentativa de conciliação dos dois elementos paradigmáticos de uma oposição: o absoluto e o relativo. (FERRAZ:1987, p. 19)
A partir de fins do Séc. XVIII, com a advento da era
romântica, a ironia ganha independência formal. Essa autonomia coincide
com o momento
em que na literatura o autor não é capaz de se apresentar dentro da obra, como
fizera no D. Quixote ou nas comédias de Shakespeare, mas toma consciência (e
assume essa consciência no seu modo de fazer literatura) de que é não só o
autor, mas o criador de um "organismo", e não apenas o veiculador de
um código mimético que a poética impusera de maneira mais ou menos sistemática.
A autonomia formal da ironia processa-se quando mal se começa a adivinhar a
inevitabilidade de a literatura ser linguagem, quando se começa a perceber que
a obra literária não é só, ou sobretudo, uma interpretação/representação
(mimese) do universo (real ou poético), mas, mais do que isso, um modo peculiar
de a linguagem formular um universo; a própria linguagem é o mundo. (FERRAZ: 1987, p. 19)
Exprimindo a impossibilidade do certo, do verdadeiro,
do absoluto, como dados únicos da realidade, o ironista expressa sobretudo o
conflito, a crise, a contradição.
Os problemas advindos das pesquisas de vários
estudiosos sobre os procedimentos irônicos têm-se complicado por se preferir
falar da origem ou natureza da ironia, das suas possíveis classificações, sem
se assumir, de antemão, que a sua estrutura é, basicamente, uma estrutura
comunicativa. A ironia é uma manifestação da linguagem. Falar de comunicação a
propósito da estrutura irônica implica nomear como elementos fundamentais dessa
estrutura um emissor, um receptor e uma mensagem. É necessário que haja entre o
primeiro e o segundo uma convenção pré-estabelecida, ou seja, que ambos
participem do conhecimento de um mesmo código que permita essa mesma
interpretação.
Essas considerações se tornam importantes quando se
tem por objetivo o estudo de uma obra literária, na qual a narrativa constitui,
naturalmente, o espaço privilegiado da ironia. FERRAZ (1987: p. 29) argumenta
que
se já
reconhecemos que a verdade do ironista não é uma verdade acabada, definitiva,
mas uma verdade (im)possível, paradoxalmente ambígua, uma verdade em crise ou
em conflito consigo própria, não surpreende que o ambiente privilegiado para a
expressão verbal da ironia seja a literatura, lugar, por excelência da
expressão/problematização da linguagem, na relação/oposição realidade/ficção ou
verdade/ilusão. Com efeito, a literatura tem sido considerada a arte em que
mais claro é o caráter de representação (marcadamente mimética até aos alvores
de modernismo).
Enquanto figura, a ironia, no seu uso mais corrente,
postula significar o contrário do que se diz, tanto no contexto como no texto,
dizer o contrário do que se pensa ou do que se quer seja pensado. Segundo
DUARTE (1991:7), "encontra-se a ironia, em geral, na obra literária que
demonstra consciência de seu processo de construção e percepção da fragilidade
da linguagem como estabelecedora de sentido" Ou ainda num determinado tipo
de texto cujo corpo se caracteriza "pela presença de jogos de enganos e
camuflada luta pela realização do desejo". Mesmo dizendo o contrário do
que afirma, diz sobretudo mais do que fica expresso; daí ser o texto o seu
território e os signos, o seu disfarce. Entre um e outro, algo em comum: para o
leitor, buscar sentidos para o lido e decifrar o significado das palavras nos
diversos sintagmas constitutivos de toda construção textual, assemelha-se à
tentativa de se querer o equilíbrio quando se caminha por uma corda bamba.
Ainda de acordo com Duarte,
essa desestabilizadora de discursos não é originariamente literária, embora muito utilizada na literatura de todos os tempos: podem ser encontradas expressões marcadas pela ironia já na épica de Homero, na lírica de Arquíloco. (...) Explica-se assim que, ao se falar de ironia, geralmente se faça referência a Sócrates e a sua maiêutica – a sua técnica de partejar idéias –, que consistia em propor questões dissimuladamente simples e ingênuas ao interlocutor dogmático. Ao contestar disfarçadamente conteúdos tidos como definitivos, o filósofo mostrava a fraqueza dos raciocínios e opiniões, abalava as certezas e fazia instalar-se em seu lugar o vazio. (DUARTE: 1991:7)
A partir dos pressupostos socráticos, as teorias contemporâneas
reconhecem o caráter reversível da palavra e as transgressões, operadas no
código, como mecanismos de que o texto se serve para embaralhar sua decifração.
O desacordo entre enunciado e enunciação constitui o
terreno da imprevisibilidade, da incerteza, da estranheza, da
contraditoriedade, características da ironia. Revela seu caráter
revolucionário, questionador, contestatório. Sendo assim, a aptidão do homem
para a ironia pode ser proporcional a sua capacidade de questionar o discurso
ideológico do contexto em que está inserido.
Os vários tipos de ironia, no entanto, podem ser
reunidos
em dois
grandes grupos, esclarecendo tratar-se de distinção estabelecida a partir dos
objetivos da comunicação irônica: ironia retória, de oposição ou de primeiro
grau e ironia filosófica, de conciliação, de segundo grau, humoresque, literária ou simplesmente humor. (DUARTE :1991, p.8 e 9)
A ironia retórica é a figura em que a palavra é
diretamente oposta ao pensamento, de forma a ressaltar o que se tem no espírito.
Apresenta um sentido que recobre outro, mas determina com clareza para o
receptor atento qual é o sentido pretendido. De caráter essencialmente
pragmático, leva o narrador a utilizá-la para conseguir um objetivo definido:
valorizar algo que ele pensa, e estabelecer um sentido para o seu texto. Nesse
caso, assume uma atitude de cumplicidade com o leitor e procura reter sua
atenção. Coloca-se, todavia, numa posição de superioridade em relação a esse
leitor, jogando com a possibilidade de que este entenda ou não a ironia
presente no texto, mas que a aceite sem discussões. Usada geralmente no plano
do enunciado, a perspectiva dessa ironia de primeiro grau é, portanto, a do
narrador ou sujeito do enunciado e da diegese.
Se a ironia retórica preocupa-se com o estabelecimento
de um sentido, na ironia literária[3]
essa ligação desaparece, pois ela impede a clareza e a definição de um
determinado sentido e possibilita a polissemia; por isso mesmo, critica a
ironia retórica. Está voltada para a construção do texto e o apresenta como um
trabalho, fruto de elaboração artística. Coloca dois ou mais sentidos em
tensão, inviabilizando o estabelecimento de um sentido definitivo. Esse tipo de
ironia supõe um distanciamento do leitor que lhe possibilite perceber as incongruências,
o estranhamento, as ambigüidades presentes no discurso, pois não é possível
estabelecer com clareza o significado pretendido pelo emissor. O campo da
ironia literária é o da enunciação, da tessitura textual propriamente dita.
Valoriza a linguagem como elemento construtor de arte ou jogo de significados e
encontra-se desvinculada dos jogos de poder.
Enquanto a ironia retórica serve ao monologismo, ao
poder estabelecido, à ideologia, busca salvaguardar valores e apega-se a um
sentido já existente, a ironia literária postula o diálogo, brinca com os
valores, pois sabe que eles são mutáveis conforme o contexto e as
circunstâncias, revela que os significados não se prendem aos significantes e
podem variar, conforme o contexto. Entre ambas, no entanto, há um elemento
comum: a valorização do receptor, visto como capaz de perceber signos em
liberdade na tessitura textual.
Concluindo, a ironia pode tomar formas as mais
diversas, que escapam a uma definição precisa e que contribuem de maneira
decisiva para o desdobramento do texto em diversos níveis de significação.
Significar o contrário do que se diz[4],
eis o uso mais corrente do termo. E, em última análise, a ironia revela
sobretudo uma visão crítica do mundo.
RESUMO: Esse artigo pretende discutir o conceito de ironia e suas estreitas relações com o texto literário. Nele, o discurso irônico serve-se da linguagem para estabelecer comunicação e mostra não somente o que o texto diz, mas o modo como o texto diz o que diz.
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[1] Conforme José Américo de
Miranda, em seu ensaio teórico Considerações
acerca dos fundamentos semióticos da ironia, publicado o Boletim do Centro
de Estudos Portugueses, Vol II, nº 13, junho de 1991, página 182.
[2] Quintiliano (De Institutione Oratoria, VII, 6.54)
considerava o sarcasmo como o termo
grego para uma das espécies de ironia.
[3] Esse tipo de ironia
assemelha-se com o que D.C. Muecke chama de ironia geral, Wayne Booth, de ironia
instável e Jankélévitch, de ironia humoresque.
Cf.: MUECKE, 1969, p. 111-158. BOOTH,1974, p. 240-245.
JANKÉLÉVITCH, 1964, p. 172-191.
[4] Segundo Carlos Bonsoño, autor de Teoria
de la expresión poética (Madrid, Editorial Gredos, 1976), citado por Roster
à página 19: la ironia(...) es um recurso
que consiste em dar a entender lo contrário de lo que se dice.