DA PRODUÇÃO DE DOCUMENTOS TERMINOLÓGICOS: ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A MICROESTRUTURA

(THE PRODUCTION OF TERMINOLOGICAL DOCUMENTS: SOME QUESTIONS ABOUT THE MICROSTRUCTURE)

 

Rosiane Cristina Gonçalves BRAGA (Pós- Graduação, Universidade de São Paulo)

 

 

ABSTRACT: This text discusses the microstructure of technical-scientific vocabularies, analyzing the structural coherence of the entry of water resources and tourism vocabularies and characterizing the necessity of this coherence to the efficiency of vocabularies.

 

KEYWORDS: microstructure; remission network; terminological documents.

 

 

0.        Introdução

 

Os documentos terminológicos, para cumprirem suas funções de organizar, armazenar e divulgar conhecimento, precisam ser organizados à luz de uma metodologia rigorosa, que estabeleça uma estrutura coerente, adequada a toda a microestrutura. Fundamentando-nos nesses parâmetros, analisamos algumas questões relacionadas à microestrutura de obras terminológicas, identificadas seja como dicionário, vocabulário ou glossário, verificando o rigor metodológico e a coerência estrutural e utilizando como corpus verbetes de vocabulários de recursos hídricos e turismo. Apresentamos, ainda, como exemplo, o modelo de microestrutura que norteou a produção do Vocabulário Sistemático de Telefonia Celular. Para tanto, pautamo-nos nas ponderações de BARBOSA (1998, 1989a, 1989b), ISO 704 (2000), ISO 1087 (1990), NBR 13789 (1997) e HERMAN (1989).

 

1.        A produção de vocabulários técnico-científicos e a coerência estrutural

 

O vocabulário técnico-científico, por ser a compilação do conjunto terminológico e, por isso, refletir a ‘visão de mundo’ das áreas, desempenha importante papel na consolidação e expressão das ciências e tecnologias. Estas dependem da constituição de tais obras no que tange à difusão e melhor transmissão do seu conhecimento. Os documentos terminológicos garantem, ainda, a recuperação mais rápida desse saber e se constituem em meios de investigação e pesquisa desse arcabouço teórico. A estagnação na produção dessas obras poderia causar a perda ou o esquecimento do saber já construído e obrigaria as áreas a produzirem novamente uma informação já organizada e perdida. Como toda obra lexicográfica, os vocabulários técnico-científicos são construídos a partir das unidades lexicais consagradas pelo uso, por isso parecem ser a expressão da verdade. O fato de se relacionarem aos universos científico e tecnológico, aceitos como campos neutros e objetivos, salienta ainda mais esse pretenso caráter veridictório. Considerados como expressão da verdade, tais documentos terminológicos são tomados como um discurso de alta confiabilidade (BARBOSA, 1989a). Para fazerem jus a essa alta confiabilidade e ao caráter veridictório que lhes são atribuídos e, também, para alcançarem de maneira efetiva seus objetivos, tais obras precisam ser produzidas à luz de uma metodologia adequada, principalmente no que tange às suas microestruturas. Microestrutura pode ser definida como o conjunto de informações que se seguem à entrada (BARBOSA, 1989b:567), no qual constam a definição mais uma variada gama de paradigmas (categoria gramatical, contexto, remissões, etc.). Segundo a norma ISO 1087 (1990), a definição é um enunciado que descreve um conceito e que permite distingui-lo dos outros conceitos no interior de um sistema de conceitos. Para tanto, é necessário assinalar diferenças e semelhanças. Como o paradigma definicional deve conter apenas as informações necessárias à descrição conceitual, a definição pode ser amparada por um sistema de remissivas que, ao relacionar noções, permite a diferenciação de suas características (ISO 704, 2000: 18). A escolha das informações que vão formar a microestrutura depende do tipo de obra lexicográfica que se deseja produzir. No entanto, escolhida a organização da microestrutura, esta deve ser mantida ao longo de toda obra, com o intuito de garantir o rigor metodológico, fator que influi decisivamente na confiabilidade. Um vocabulário técnico-cientifíco que não mantém uma coerência estrutural intra e interverbetes pode causar desconfiança por parte de quem o manuseia (BARBOSA, 1998:02 e 03). Levando em consideração a variabilidade da microestrutura de acordo com o tipo de obra e com os critérios particulares de seleção de dados de cada autor, tomamos como foco de nossa análise a manutenção da estrutura escolhida ao longo da obra, bem como o estabelecimento do sistema de remissivas e a coerência do paradigma definicional. Cumpre observar que o conteúdo informacional dos verbetes não será analisado.

 

2.        Microestrutura: análise da coerência estrutural e do rigor metodológico

 

As três obras relacionadas a recursos hídricos selecionadas foram: o Glossário de Termos Hidrológicos, organizado e divulgado pela ANEEL- Agência Nacional de Energia Elétrica, o Dicionário de Termos Técnicos de Irrigação e Drenagem, produzido pela Associação Brasileira de Irrigação e Drenagem, que se divide em capítulos, dos quais dois nos interessam (hidrologia e recuperação da água), e o Glossário de Termos Técnicos, que se constitui de duas partes, sendo a primeira intitulada “Terminologia Usual em Recursos Hídricos”. Selecionamos, aleatoriamente, os verbetes: afluente, barragem e recursos hídricos. Abaixo, transcrevemos os artigos:

 

1) Glossário de Termos Hidrológicos

AFLUENTE SIN TRIBUTÁRIO Curso de água que desemboca em um outro maior ou em um lago.

BARRAGEM VER TAMBÉM BARREIRA, DIQUE, VERTEDOR, AÇUDE Barreira construída transversalmente a um vale para represar a água ou criar um reservatório.

RECURSOS HÍDRICOS Numa determinada região ou bacia, a quantidade de águas superficiais ou subterrâneas, disponíveis para qualquer uso.

 

2) Dicionário de Termos Técnicos de Irrigação e Drenagem

Afluente: curso d’água ou rio que entram (sic) num rio maior ou num lago: sistema tributário.

Barragem, vertedouro, represa, barragem de derivação:  1- Barreira que atravessa um curso d’água, com a finalidade de desviar uma parte ou toda a água de um curso d’água para dentro de um canal. Uma barragem de derivação pode, incidentalmente, armazenar água para casos de emergência. Denominado ‘anicut’ no sul da Índia. 2- Barreira que atravessa um curso d’água ou um conduto, para manter ou controlar o nível da água. 3- Abertura na parte superior de uma barragem ou de um dique, para descarregar a água excessiva. 4- Perfil sobre o qual a água é obrigada a passar, e que é usado para medir a vazão.

Não define recursos hídricos.

 

3) Glossário de Termos Técnicos

Afluente curso de água que deságua em outro curso de água considerado principal. Água residuária ou outro líquido, que flui para um reservatório, corpo d’água ou instalação de tratamento.

Não define barragem.

Recursos Hídricos as águas superficiais e subterrâneas utilizadas para algum fim relacionado com a atividade humana.

 

Inicialmente, teceremos as ponderações sobre a estrutura da definição e, então, sobre o sistema de remissivas. Comparando os verbetes do documento 1, verificamos que o de recursos hídricos não segue a estrutura definicional dos outros artigos, pois se inicia com “numa determinada região ou bacia”. Esta expressão poderia vir no final da definição, desse modo a coerência se manteria. Em afluente, percebemos um problema de circularidade (“curso d’água que deságua em outro maior”), amenizado pela definição de curso d’água na obra. Os verbetes do 2 também apresentam um problema de homogeneidade, já que, ao definir barragem, os autores incluem na definição informações que deveriam constar em nota (“Uma barragem de derivação pode, incidentalmente, armazenar água para casos de emergência. Denominado ‘anicut’ no sul da Índia.”)[1]. Em Glossário de Termos Técnicos encontramos um enunciado definitório circular no primeiro verbete, parecido com o apresentado em 1 (“curso d’água que deságua em outro curso d’água considerado principal”). Porém, a circularidade é agravada pela não definição de curso d’água (ISO 704, 2000: 18 e 20). A segunda acepção de afluente, apesar de não estar devidamente marcada, por exemplo, com o número dois, não apresenta circularidade, todavia inicia-se com água residuária que possui, dentro do universo de discurso, uma acepção particular, que não consta do documento. Para ser usado no enunciado definitório, o termo deveria ter sido definido na obra (ISO 704, 2000: 18). A definição do segundo verbete inicia-se com artigo definido. Segundo a norma NBR 13789 (1997: 05), a definição não deve começar com artigo. Além disso, novamente, são utilizados termos (águas superficiais e águas subterrâneas) que não constam do Glossário. Cumpre salientar que, apesar de termos escolhido apenas três verbetes, que constituem um corpus irrisório, deparamo-nos com falta de homogeneidade na estrutura da definição, com problemas de circularidade e de não definição de termos. Como a seleção foi aleatória, podemos inferir que há ainda outros problemas de definição nos verbetes não selecionados. A microestrutura dos dois primeiros documentos apresenta dois mecanismos de remissão: um que relaciona sinônimos (SIN em 1 e dois pontos em 2 (conforme apresenta o verbete de afluente) e outro que interliga os conceitos relacionados (VER em 1 e lista de termos após entrada em 2). Como o sistema de remissivas é um dos paradigmas da microestrutura, a não manutenção dessa rede implica em incoerência estrutural. Em Glossário de Termos Hidrológicos, encontramos duas questões que precisam ser comentadas: a) não há definição na obra de dique e açude, o que invalida a remissiva, colocada no segundo verbete; b) o sistema não se fecha, já que em barreira[2] não há a remissão ao termo barragem. Em Dicionário de Termos Técnicos de Irrigação, o problema reside na inconsistência dos mecanismos: no primeiro artigo os dois pontos são utilizados para apontar o sinônimo (sistema tributário), já no segundo o sinônimo é colocado na lista de termos relacionados, sem nenhuma marca (barreira de derivação). Além disso, a rede de remissões não se fecha, porque em vertedouro[3] não há a referência à barragem. Entretanto, a questão mais complicada está na falta de termos[4]. Em 1, há a remissão a açude e dique e eles não são definidos no glossário. Em 2, não há a definição de lago, utilizado na microestrutura de afluente, e de recursos hídricos, um dos termos centrais da hidrologia. O problema se intensifica se os termos forem utilizados como hiperônimos, o que ocorre em 3, conforme já ressaltamos.

Apesar da importância de se produzir documentos terminológicos pautados em uma metodologia, os problemas analisados aparecem também em dicionários de outras áreas. É o caso de dicionários de Turismo freqüentemente utilizados em universidades, como Dicionário Enciclopédico de Ecologia e Turismo, de Américo Pellegrini e Turismo: Conceitos, Siglas e Definições, de Arminda Souza e Marcos Corrêa, dos quais selecionamos três verbetes, transcritos abaixo:

 

Dicionário Enciclopédico de Ecologia e Turismo

planejamento elaboração de trabalho em etapas, com planos, métodos e programas definidos, visando ao melhor aproveitamento e à exploração dos recursos disponíveis. diagnóstico   instrumento de estudo utilizado para planejamento de turismo. Trata-se de um levantamento da situação atual de determinada localidade a partir dos dados relativos aos recursos naturais e culturais, atrativos turísticos, infra-estrutura urbana e de apoio turístico, acesso, estrutura social e econômica, demanda, etc.

plano turístico   documento que apresenta o conjunto de ações e propostas a serem levadas a cabo durante o processo de planejamento turístico de determinada localidade e/ou região. Geralmente o plano turístico não é muito detalhado. V. programa turístico, projeto turístico.

 

Turismo: Conceitos, Siglas e Definições

PLANEJAMENTO TURÍSTICO– É o processo pelo qual se analisa a atividade turística de um país ou região, diagnosticando seu desenvolvimento e fixando um modelo de atuação, mediante estabelecimento de objetivos, metas e instrumentos, com os quais se pretende impulsioná-la, coordená-la e integrá-la ao conjunto macroeconômico em que se encontra inserida.

DIAGNÓSTICO TURÍSTICO – Etapa do planejamento que descreve a situação atual do destino com base nos fatos, nas estatísticas e no seu histórico, obtidos pelo inventário.

PLANO – É o documento que define a filosofia geral e abrange o sistema por inteiro, contendo o conjunto de ações, de programas e de projetos propostos durante o processo de planejamento.

 

O Dicionário Enciclopédico de Ecologia e Turismo possui um sistema de remissivas duplo: os termos citados nos enunciados definitórios, que são retomados e definidos na obra, são destacados em negrito e os termos relacionados são colocados no final da definição, marcados em negrito e indicados por V. Todavia, a rede de remissivas não é coerente, ou seja, não se mantém em todos os verbetes. Por exemplo, em plano turístico, relaciona-se projeto e programa turístico, através de V, e planejamento, através do negrito, o que permite ao consulente compreender a relação entre os termos citados. No entanto, em planejamento, não há remissivas para plano turístico, nem para diagnóstico. Dessa forma, o ciclo remissivo não se completa, o que parcializa a eficiência das remissões. Também há um problema na segunda e terceira definições, caracterizado pela falta de homogeneidade do paradigma. Em diagnóstico, as informações iniciadas a partir da expressão “trata-se” ou deveriam ser reestruturadas, para adequar-se melhor à definição, ou deveriam constar em nota. O mesmo ocorre em plano turístico, a última informação (“geralmente o plano turístico não é muito detalhado”) deveria formar uma nota. Já Turismo: Conceitos, Definições e Siglas não possui nenhum sistema de remissivas, pelo menos nos verbetes das unidades terminológicas que destacamos. Para completar, dois dos três enunciados definitórios se iniciam com o verbo ser. Segundo a norma NBR 13789 (1997:05), as definições terminológicas não devem começar com “é”. O segundo verbete, porém, possui uma estrutura definicional mais adequada. A falta e as falhas da rede de remissões não permitem ao consulente relacionar os termos, nem perceber quais formam um pequeno sistema de relações conceituais. Por isso, obras que apresentam essas inadequações acabam por apresentar os termos/conceitos de forma compartimentada, o que impossibilita que o usuário amplie seus conhecimentos, reconstrua a rede conceitual que estrutura o saber da área, ou possa confirmar relações conceituais que já saiba.

A incoerência estrutural parece advir da falta de rigor metodológico. Nestas condições, é necessária a adoção de procedimentos que garantam que a metodologia utilizada para produzir um verbete o seja também em todos os outros. Uma das maneiras de organizar adequadamente as microestruturas é estabelecer-lhes um núcleo comum em forma de paradigmas, que devem ser selecionados de acordo com as características da área. Por exemplo, para a produção dos artigos do Vocabulário Sistemático da Área de Telefonia Celular foi estabelecido o seguinte modelo:

 

Artigo={entrada + paradigma informacional (+/– forma expandida (sigla) + categoria gramatical +/– abreviatura +/– variantes) + paradigma definicional + paradigma pragmático (contexto) + paradigma relacional (sistema de remissivas) +/–paradigma informacional complementar (notas)}.

 

Desse modo, todas as microestruturas podem ser organizadas a partir do modelo, fato que garante que todas possuam a mesma estrutura. O estabelecimento de um modelo direciona a produção de todos os verbetes, o que, além de facilitar a organização da microestrutura, ainda garante a coerência estrutural.

 

3.        Conclusão

 

Segundo HERMAN (1989: 530), as definições terminológicas têm um fim didático, pois objetivam atender às necessidades do usuário, que as consultam em uma situação de leitura ou de escritura, em busca de fundamentos teóricos. Ademais, mesmo os documentos descritivos, acabam adquirindo um valor referencial, afinal registram definições e termos pautados no uso. Nestas condições, as obras terminológicas, além de serem discursos de alta confiabilidade e de possuírem um caráter veridictório, assumem funções pedagógicas e referenciais, o que reforça a necessidade e importância do estabelecimento e do respeito a uma metodologia de organização da microestrutura, garantindo sua homogeneidade e coerência. Desse modo, a determinação de modelos de microestrutura pode ser um dos mecanismos a serem utilizados para que o documento seja organizado a partir de uma metodologia adequada e constante.

 

RESUMO: Este texto discute a microestrutura de vocabulários técnico-científicos, analisando a coerência estrutural dos verbetes de vocabulários de recursos hídricos e turismo e enfatizando a necessidade dessa coerência para a confiabilidade e utilidade das obras.

 

PALAVRAS-CHAVE: microestrutura; remissões; documentos terminológicos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ABNT. NBR 13789. Terminologia- princípios e métodos- elaboração e apresentação de normas de terminologia. Rio de Janeiro: ABNT, 1997.

BARBOSA, M. A. Aspectos da produção de vocabulários técnico-científicos. Estudos lingüísticos. Anais de Seminários do GEL .São Paulo: GEL/USP. 1989a.

_____.Da microestrutura dos vocábulos técnico-científicos”. Anais do IV encontro nacional da ANPOLL. Recife , ANPOLL, 1989b.

_____. Terminologias multilíngües: contribuições à elaboração da microestrutura de dicionários terminológicos. VII Encontro Nacional de Tradutores, I Encontro Internacional de Tradutores. São Paulo: USP, 1998.

ISO 704. Principles and methods of terminology, 2000.

ISO 1087. Terminology-vocabulary,1990.

HERMAN, A. La definition des termes scientifiques. In: Meta XXXIV. Número 03, setembro de 1989.



[1] A ISO 704 (2000: 18) recomenda que as definições devem ser breves e que qualquer informação descritiva adicional considerada necessária deve constar em nota.

[2] BARREIRA Obstrução ao escoamento superficial ou subterrâneo da água.

[3] Vertedouro: Barreira contínua sobre a qual a água verte.

[4] Segundo BARBOSA (1989a: 06), se a obra representar apenas parte do universo de sua área-tema, seu caráter científico e sua utilidade são prejudicados.