A mercantilização do prazer

 

Clemara Bidarra – UNESP/Araraquara

 

ABSTRACT: This research concerns a study of eroticism within an historic and discursive view of the western thought. We intend to follow the paths marked by the contextual differences which construct the conceptual values of the eroticism, walking to the market categorization.

 

KEYWORD: eroticism, history, present era, multidisciplinary, market.

 

Não é difícil perceber a instrumentalização erótica no que diz respeito ao plano econômico. Sabiamente, ou capitalisticamente, vários produtos e serviços que envolvem a arte erótica constituem um dos grandes filões comerciais da sociedade neoliberal. Basta pensar em alguns itens como: motéis, sex-shops, revistas, filmes, boates, bares, livros, canais fechados de TV etc., isto no mercado lícito, excluindo itens ilícitos como turismo sexual e prostituição, por exemplo.

 

Isto porque, enquanto matéria consumista, o erotismo será visto não como fruto de uma imaginação simbolizante interpessoal, mas moralizante e narcísica, expandindo e confundindo-se com suas variáveis que, para aproveitar um conceito modernamente em voga, chamaremos de genéricas.

 

Como já é sabido, o genérico mais indicado para questões que evolvem o erotismo mercadológico é a pornografia. Em um artigo da Carta Capital (08/09/2001), Germaine Greer, uma feminista ferrenha, traça seus apontamentos sobre a procura do prazer, que legitimada e estimulada por todos, faz da indústria pornô, nossa grande musa, fazendo uma analogia bastante interessante: “A propaganda de alimentos vende comida de fantasia e a de sexo, sexo de fantasia. Do mesmo jeito que a publicidade de fast-food e doces nos eliminou o apetite de tal forma que ninguém sabe agora que a fome é o melhor tempero para qualquer comida, a pornografia eliminou o desejo. O marketing de alimentos nos trouxe distúrbios alimentares e é bem provável que o marketing do sexo trará as mesmas conseqüências.”

 

Numa economia neoliberal, hoje imperante, o que importa é vender e lucrar a qualquer custo. Por isso um dos setores em que mais se investe é o marketing e a erotização é uma parte significativa deste processo, pois os estrategistas publicitários são verdadeiros marxistas-freudianos que conhecem a necessidade de “investimentos libidinais” para realçar seus produtos ou serviços, uma vez que a “economia também é consumida esteticamente” Jameson (2001).

 

A essência deste novo momento consiste em contemplar a interação de corpos isolados e ativados, supostamente, não controlados por qualquer lei. Quer estejam se masturbando ou sendo observados por voyeurs, quer sozinhos ou em grupo, os corpos atomizados e pulverizados mercadologicamente só são percebidos enquanto aparências  adornadas, disfarçadas por cores e texturas  desejadas pelo olho público, codificadas como símbolos de status e poder reais ou imaginários – linhas que não se opõem na “lógica” capitalista, ou melhor, na sociedade do espetáculo. Eis o espetáculo que em toda sua extensão encena a falsa saída de um autismo generalizado.

 

Por mais importante que seja perceber esta exploração do corpo, não se pode perder de vista que existe uma outra: aquela que afasta as massas de  problemas outros. Assim, conjugando condições de vida e de trabalho com a ideologia de mercado, constatamos que, ao mesmo tempo em que é reduzida à genitalidade, a sensualidade erótica não se transforma apenas em mercadoria, em fast-sex, ela vem igualmente explorada em termos políticos e ideológicos.

 

Longe de contrariar os interesses deste grande mercado, a permissividade ocupa seu lugar em nosso tempo. Trinta anos atrás, uma convicção elementar se via mais ou menos partilhada pelos que contestavam a ordem moral e lutavam pelo livre acesso de cada um aos prazeres do corpo. Em nossa mente, é indiscutível que toda ordem moral tem seus aproveitadores, os que lucram com ela, razão pela qual, toda moral é suspeita.

 

A mercantilização irremediável, o apelo sistêmico ao prazer é uma evidência recorrente. A tal ponto que a descrição contábil destes novos mercados ora substitui a problemática moral de antes. Talvez nem nos damos mais conta desse viés. A essência revolucionária foi solapada pelos cifrões. Fatalidade cruel...

 

Parafraseando Hobsbawm (2000), as chamas revolucionárias se apagaram e em seu lugar, desenvolveu-se um novo estilo e uma nova escala de valores que juntos, formariam A Era do Capital, ou seja, a definitiva consolidação da cultura burguesa, sem qualquer hipótese de tons românticos para abrandar esta denominação.

 

O direito aos prazeres, diz Raoul Vaneigem[1], “tomou a feição de uma conquista, ao passo que os prazeres já estavam conquistados pelo mercado... Em certo sentido, os tabus e as proibições religiosas e morais haviam protegido o orgasmo contra o risco da utilização mercantil”(p. 73). O gozo não é mais resultante de uma liberdade afetiva interpessoal, é objeto de um desafio esportivo que se trata, dia a dia, de ganhar. A ansiedade não é mais a do juízo moral, mas a da avaliação comparativa. Daí o desencadear de receitas e conselhos em várias mídias, pois o “se dar bem”, tornou-se o manual de civilidade do casal moderno.

 

A imprensa feminina é instrumento “privilegiado” dessa propagação: “depois de quanto tempo você se sente à vontade com um homem?”, pergunta-se em Elle. Consultem os “guias dos gestos sensuais”, propõe Marie-Claire. “Você já passeou por um sex-shop? Já fez amor com outra mulher?” pergunta a Nova, enquanto a Claudia oferece “planos quentes que dão resultado” e que vão do  “pênis artificial a bolas de gueixas”. E Bárbara oferece “o sétimo céu em seis lições”.

 

A televisão e o cinema, sem dúvida, propõem igualmente, modelos de comportamento erótico bastante normativos. E não ser capaz de segui-los é, muitas vezes, sentido como vergonhosa inferioridade ou até sofrimento. Por exemplo, quando assistimos ao “orgasmo” notamos que este é sempre acompanhado de “gritos” ou “altos gemidos”. Com isso, formamos meninas/mulheres que crêem que isto faz parte da conquista e, por isso,   adquirem o hábito de dar estes “gritinhos” desde o início de sua vida sexual, mesmo quando não estejam sentindo nada. Ou seja, para reproduzir o que acham “normal”, empenham-se em fazer o mesmo que viram, e assim, as relações com seu parceiro, realmente, igualam-se a dos atores: são igualmente falseadas.

 

Este é o grande projeto do erotismo contemporâneo: uma ideologia totalitária que encontra na economia global sua resposta mais providencial. Estamos ligados nos desejos dos outros, da multidão, das revistas, dos filmes. O conformismo empurrado porta afora pelas Revoluções Contemporâneas nos volta pela janela. É a esta lógica da imitação que entregamos nossa “liberdade”. Somos seres livres na ação, mas submissos a tais modelos. Cada uma está persuadido de que o outro é, realmente, autônomo em seus desejos.

 

Adorno[2] já havia esboçado esta contradição fundamental que a permissividade acarreta. A cultura de massa é a máquina de demonstração do desejo. Olhe. É isto que deve interessar a você, diz ela. Deste modo, atribui-nos a incapacidade de encontrar sozinhos a quem desejar.

 

É verdade que esta utilização visa a lances financeiros consideráveis. Nenhum economista, nenhum estatístico conseguiu ainda avaliar a cifra global de negócios de todas as indústrias de serviços ligados, direta ou indiretamente, ao mercado erótico. Mas alguns dados deixam entrever que é gigantesca. A revista US News and World Report, em 1996, notificou que os americanos gastaram mais de 8 bilhões de dólares em vídeos, espetáculos, emissões de TV a cabo, acessórios etc., ou seja, mais do que a receita obtida por toda produção de Hollywood no mesmo período.

 

Mesmo não sendo propriamente s números de movimentação econômica nosso foco analítico, vejamos alguns dados de nosso país no mercado de mídia impressa – revista. Diante de um levantamento de dados fornecido pelo IVC (Institudo de Verificação de Circulação), selecionamos, elucidativamente, três revistas que veiculam o nu feminino, todas do mês de julho de 2001, a fim de que tenhamos uma referência, mesmo que mínima, do número de consumidores que move este mercado. Segue um resumo dos resultados:

 

             Titulo                         Circulação Paga                 Preço Unitário

Revista VIP

110.500 exemplares

R$ 6,90

Revista SEXY

100.000 exemplares

R$ 7,50

Revista PLAYBOY

500.000 exemplares

R$ 7,90

                                                                                                                             Fonte IVC

                                                                                                                                            

Dentre as figuras emblemáticas que se destacam nesta nova crônica econômica mundial, citamos o arquimilionário americano Larry Flint, rei do pornô, a quem Milos Forman dedicou um filme (The People vs. Larry Flint). Este homem, que se transformou num “respeitável” homem de negócios da pornografia criando a revista Hustler, ganhou seu primeiro milhão de dólares publicando fotos de Jackie Onassis nua em uma ilha grega.

 

Cada vez mais o dinheiro manipulará as manifestações e contestações permissivas divulgada pela mídia. É nisto que se revela a verdadeira obscenidade contemporânea. Ela não consiste na provocação deliberada, pelo viés de um espetáculo erótico, e sim, na apropriação de uma revolta, de uma utopia e de uma linguagem pelos defensores do lucro, ostensivamente indiferentes, de sua parte, a tudo que não seja explorável ou quantificável.

É o que transparece, por exemplo, em polêmicas que se referem à Internet. A preocupação de controlar a anárquica soma mundial de mensagens, a fim de eliminar as propagandas demasiado imorais – pedofilia, proxenetismo etc. – choca-se com a dificuldade que não é apenas tecnológica, mas de doutrina. A contemporânea inquietação moral vê-se obrigada a ajustar-se aos dogmas das Bolsas de Valores, termo ambiguamente apropriado às tais inquietações. Mais uma vez, o discurso toma à frente.

 

RESUMO: Este trabalho visa abordar a questão das diferentes manifestações discursivas que envolvem a questão do erotismo contemporâneo, principalmente, no que tange a perspectiva mercadológica.

 

PALAVRAS-CHAVE: erotismo, discurso, história, contemporaneidade, mercado.

 

REFRÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CABRAL, J.T. (1995) A Sexualidade no Mundo Ocidental,

Campinas/SP, Papirus.

DEBORD, G. (1997) A Sociedade do Espetáculo, São Paulo,  

Contraponto.

HOBSBAWM, J. (2000) A Era do Capital, trad. L. Neto, 5a.

ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra S.A. .

KRISTEVA, J. (1994) Introdução à Semanálise, São Paulo,

Perspectiva.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Lê Livre dês plaisirs, ed. Labor, 1979.

[2] “A Indústria Cultural”, in Comunicação e Indústria Cultural, São Paulo, ed. Nacional, 1977.