DESIGNAÇÃO: A ARMA SECRETA, PORÉM INCRIVELMENTE PODEROSA, DA MÍDIA EM CONFLITOS INTERNACIONAIS

 

Kanavillil RAJAGOPALAN (Universidade Estadual de Campinas)

 

 

ABSTRACT:   I argue in this paper that designation, the process by which we give a ‘local habitation and a name’ to an object, be it real or imagined, and thereby bring it center stage and make it available for further discursive practices, must be seen as  the first and perhaps the most important step in the ideological manipulation of the readers’ attitude in relation to the object named and talked about. I underscore therefore the importance of looking at strategies of  designation or naming, in understanding the role of news media in the dissemination of ideologically slanted information.

 

KEYWORDS: media – politics – linguistic identity – designation – reference

 

 

It was 1992, and the old Soviet system had collapsed less than a year before. Russians had the feeling that now they were living in a democracy everyone should be allowed to do anything. Secret documents were being released at a breath-taking rate; we could ring any senior official, no matter how high up, and expect that he or she would speak to us on camera; the Russian newspapers were revealing truths about their government and society which had been secret for ever. None of it lasted, of course. As Russians came to know and understand more about the West, they found out that there is little freedom of information there either.

 

— John Simpson (2000:155)

 

My impression is the media aren’t very different from scholarship or from, say, journals of intellectual opinion—there are some extra constraints—but it’s not radically different. They interact, which is why people go up and back quite easily among them.

 

— Noam Chomsky (1997)

 

0. Introdução

 

                Desde a Guerra do Golfo, já há mais de uma década, o papel da mídia tornou-se inconfundivelmente visível e inegável. Há quem diga que aquele famigerado confronto entre as tropas de Saddam Hussein e o poderio militar dos EUA, auxiliado pelo poder de fogo das demais potências da OTAN, foi a primeira guerra inteiramente travada sob os holofotes da atenção mediática. A guerra contra o Iraque inaugurou a nova era de conflito em grande escala como verdadeiro espetáculo a ser comercializado e apreciado pelo público, e transmitido, muitas vezes, ao vivo—com direito a replays e intervalos ‘comerciais’. Como detentores dos rumos do conflito travado no deserto—e poeticamente apelidado de “operação ‘Tempestade na Areia’ ”—e das informações (censuradas, é claro), os aliados controlaram a guerra, de ponta a ponta, decidindo inclusive sobre as pausas. As guerras de hoje são verdadeiros shows de audiência em escala planetária—dignas da “sociedade de espetáculo” (Debord 1967) em que vivemos.

Já na guerra do Afeganistão, a situação mudou bastante, desta vez em total prejuízo da CNN e das demais emissoras que dominam o mundo da mídia, uma vez que quem controlava o fluxo e a transmissão de informações era, não o lado vitorioso, mas sim, o lado dos derrotados. E, como acontece com freqüência com eventos de audiência assegurada como a Fórmula-1, a Copa do Mundo etc., os taleban acharam por bem lotear os direitos de transmissão entre os “amigos” e a rede árabe Al Jazeera ficou com o monopólio da transmissão dos vídeos gravados pelo inimigo número um dos aliados, Osama Bin Laden, vídeos estes que eram entregues por mãos invisíveis a uma das sucursais da emissora de tempo em tempo. Foi também nessa guerra que a questão da censura veio à tona. Embora se diga, com muita propriedade, que a primeira vítima de qualquer guerra é a verdade, nunca havia ficado tão escancarada a forma como a mídia manipula a notícia, mesmo naqueles momentos em que os responsáveis negam que estejam fazendo qualquer tipo de maquiagem propositadamente.  

Meu objetivo nesta apresentação é refletir sobre como a mídia imprime certas interpretações pelo simples ato de designação de determinados acontecimentos, dos responsáveis por tais acontecimentos, dos atos específicos praticados pelos lados em situações de conflito etc. Posto que, de acordo com certas teorias semânticas de grande prestígio, os nomes não passam de meras “etiquetas” identificadoras de objetos, é preciso pensar além da semântica dos nomes próprios para encarar o fenômeno de nomeação como um ato eminentemente político. Sustentarei a tese de que é no uso político de nomes e de apelidos que consiste o primeiro passo que a mídia dá no sentido de influenciar a opinião pública a favor ou contra personalidades e acontecimentos noticiados.

 

1. Nomes: afinal o que há de tão curioso nessas palavras?

 

                Ao longo dos tempos, as teorias de referência dedicaram-se à ingrata tarefa de desvendar os mistérios dos nomes próprios e continuam a se empenhar nessa missão hercúlea. (Rajagopalan, no prelo). Betrand Russell (1911), por exemplo, descartou como imprecisos e, por conseguinte teoricamente desinteressantes, os nomes próprios na forma como os gramáticos os conhecem, e adotou no seu lugar os “nomes logicamente próprios”. O filósofo inglês, segundo confiam seus contemporâneos e aqueles que chegaram a conhecê-lo pessoalmente, mudava de assunto toda vez que era solicitado a fornecer um exemplo concreto do que seria um nome logicamente próprio (Rajagopalan 2000).  Tratava-se, na verdade, de um gesto muito acertado, posto que uma das qualidades mais destacadas de um nome logicamente próprio é a de ser simplesmente inominável.  No momento em que se nomeia, o objeto deixa de ser tão exclusivo ou único, pois o próprio ato de nomeação se encarrega de emprestar-lhe um atributo (a saber, a própria descrição—definida, no caso—utilizada para nomeia-lo), que é publicamente disponível e, em princípio, apto para ser aplicado a outros objetos. Ou seja, o destino de nomes próprios comuns—aqueles descritos pelas gramáticas—é de um definhamento progressivo, na medida em que acabam se transformando em substantivos comuns. Donde o saudosismo velado em relação à chamada “linguagem adâmica”, isto é, a linguagem em sua forma cristalina, quando substantivos comuns seriam todos nomes próprios—posto que, Adão escolhia cada palavra para nomear um único bicho cada vez! 

                Não nos interessa aqui passar em revista as mais variadas propostas teóricas que objetivaram, ao longo dos últimos cem anos ou mais (a preocupação em si remonta um passado bem mais longínquo, talvez começando pelo próprio surgimento da filosofia enquanto um campo do saber), entender o funcionamento do nome próprio. A preocupação sempre se deu na seguinte forma. Se descrições são nada mais que representações verbais de atributos e se atributos são da ordem de acidente (e não de essência), é no nome próprio que devemos encontrar algo que pertence ao objeto de forma inalienável. Ou seja, o nome próprio deve estar “grudado’ ao objeto de maneira inseparável. Este é, no fundo, o ímpeto, ou desejo, que move teóricos das chamadas direct theories of reference (teorias que defendem referência direta ou não mediada). O “externalismo semântico” de Putnam (1975), o conceito de “rigid designators” (designadores rígidos) de Kripke (1972), ou o conceito de “Dhat” proposto por Kaplan (1978) são todos formas diferentes de captar e concretizar teoricamente tal desejo.

 

2. O discurso jornalístico e a escolha dos termos de designação

 

Sabemos que toda notícia, toda reportagem jornalística, começa com um ato de designação, de nomeação. Alias, a própria gramática tradicional nos ensina que é preciso primeiro identificar o sujeito da frase para então dizer algo a respeito ou, equivalentemente, predicar alguma coisa sobre o sujeito já identificado. É preciso, primeiro, nomear, para então dizer algo a respeito do objeto no mundo assim designado. Apesar de tudo o que os filósofos e os lógicos dizem a esse respeito, as pessoas comuns acreditam (e nisso, de certa forma, elas estão sendo influenciadas por anos a fio de ensino de gramática normativa) que o nome próprio está livre de qualquer marca de predicação—afinal, o ato de predicação incide sobre o nome próprio, identificado, portanto anteriormente a qualquer predicação.

                É, no entanto, no uso dos nomes próprios—ou, melhor dizendo, na fabricação de novos termos de designação para se referir às personagens novas que surgem no cenário e aos acontecimentos novos que capturam a atenção dos leitores, que o discurso jornalístico imprime o seu ponto de vista. Logo depois do susto de 11 de setembro de 2001, o Presidente Bush decretou guerra total aos terroristas de todos os naipes, a começar pelos seguidores do Taleban do Afeganistão. Afora o fato simples de que os terroristas para uns são os mártires para outros, o uso do termo em si serviu para identificar e isolar o inimigo “invisível” (como foi amplamente alardeado pela imprensa internacional). Daí em diante, ficou fácil partir para todos os desdobramentos da lógica binária, na qual aquele pronunciamento do Presidente dos EUA havia se baseado, ao designar os fundamentalistas islâmicos como terroristas. Foi com uma simples afirmação—na verdade uma ameaça—que a Casa Branca calou toda e qualquer voz de protesto contra a ação de represália que ia desencadear a partir daquele instante: “Quem não está conosco está contra nós”.

                É inegável o importante papel desempenhado pelos termos cuidadosamente escolhidos a fim de designar indivíduos, acontecimentos, lugares etc. na formação de opinião pública a respeito daqueles entes. Osma bin Laden foi taxado de “terrorist mastermind” (a cabeça chave dos terroristas). A mesma figura enigmática, nascida na Arábia Saudita, com fortes ligações com a família real daquele país—que, convém não esquecer, serviu de importante aliado na guerra contra a ocupação soviética—transformou-se, da noite para o dia, na imagem do próprio Satanás. Quem não se lembra daquele cidadão norte-americano que, ao olhar assustado para a foto da destruição das Torres Gêmeas de World Trade Center, chegou a identificar o rosto do Senhor das Trevas em meio à fumaça negra que encobria os céus de Nova Iorque naquele malfadado 11 de setembro de 2001?  Como chega a exclamar Slavoj Zizek (2001: 6)

 

Sempre que encontramos um mal tão puro no Exterior, nós devemos reunir a coragem para apoiar a lição hegeliana: nesse Exterior puro, nós devemos reconhecer a versão destilada de nossa própria essência. Pois nos últimos cinco séculos a prosperidade e paz (relativas) do Ocidente "civilizado" foram compradas pela exportação de impiedosa violência e destruição ao Exterior "bárbaro": a longa história desde a conquista da América ao massacre no Congo. Por mais que soe cruel e indiferente, nós também deveríamos, agora mais do que nunca, ter em mente que o efeito desses ataques é de fato muito mais simbólico do que real.

 

E o filósofo esloveno acrescenta:

 

Os EUA apenas provaram o que acontece no resto do mundo diariamente, de Sarajevo a Grozni, de Ruanda e do Congo a Serra Leoa. Se forem adicionados à situação em Nova York atiradores de elite e estupros em massa, é possível ter uma idéia do que era Sarajevo uma década atrás. Foi quando assistimos na tela de TV ao colapso das duas torres do World Trade Center que se tornou possível experimentar a falsidade dos "reality shows" da TV: mesmo se esses shows forem "de verdade", as pessoas ainda atuam neles -- elas simplesmente atuam como elas mesmas.

 

De qualquer forma, uma vez estampado o rótulo “terrorista”, o nome de Bin Laden logo se tornou sinônimo do Mal. A partir daí transforma-se em dever cristão ajudar na caça incansável ao “Gênio do Mal”, “o terrorista mais procurado do planeta”, e assim por diante. Quando, no afã do sucesso na caça aos seus seguidores, o Presidente dos EUA decreta guerra contra o “o Eixo do Mal” (termo escolhido para designar os países Irã, Iraque, e Coréia do Norte), a eficácia absoluta da nomenclatura remontava à Segunda Grande Guerra. Se o outro lado é o “Eixo do Mal”, por simples analogia (como também pela lógica da exclusão do meio termo), quem se coloca contra os estados renegados é do Bem. Diga-se de passagem, não foi à toa também que, tanto na Guerra do Golfo, como na Guerra contra o Afeganistão, os paises da OTAN preferiram se autodesignar de “Aliados”. Quem tem a mídia de seu lado, escolhe não só os termos para designar as forças de cada lado, mas também, ao escolher os termos, determina quem vai desempenhar o papel do mocinho e quem vai desempenhar o do bandido. Na sociedade de espetáculos, tudo depende do script—os capítulos diários da novela chamada a guerra (Obs: Não é à toa que se diz o “teatro da guerra” para designar o espaço físico onde acontecem as batalhas) obedecem rigorosamente às previsões feitas por quem redige o script inicial. 

                É verdade que nem sempre os nomes escolhidos funcionam da mesma forma que os estrategistas da guerra esperam. Um exemplo notório disso é a escolha do codinome “cruzada contra o terror” que o Presidente Bush chegou a empregar no início da ação armada contra os seguidores fanáticos da Al Qaeda e do Taleban. O tropeço custou muito caro para as pretensões da Casa Branca, que fez questão de fazer entender que a iniciativa bélica não tinha como alvo nem o mundo árabe, nem os seguidores do Islã, mas sim, um grupo de radicais e fanáticos que lutavam contra a própria civilização. O erro crasso, desastroso do ponto de vista diplomático, foi o de esquecer que a própria palavra cruzada possuía conotações—na verdade, se referia a um episódio da história conturbada das relações entre o Ocidente e o Oriente, repleta de traições, e crueldades imensuráveis.  Os desmentidos insistentes e até mesmo a decisão de não mais usar o termo maldito não foi capaz de consertar o estrago provocado.  Até hoje há quem duvide das verdadeiras intenções por trás da propalada afirmativa de que a guerra contra o terror é uma guerra de civilização contra a barbárie. Chamar o bombardeio indiscriminado das regiões densamente habitadas por populações cíveis de “operação cirúrgica” ou a carnificina promovida em razão de tais bombardeios de “efeito colateral” pouco contribui para aliviar a dor dos milhares de pessoas inocentes que  foram vítimas das brutalidades praticadas. Por incrível que pareça, o uso continuado de tais “eufemismos” acabam minimizando a culpa daqueles que foram diretamente responsáveis pelos atos envolvidos—ao menos aos olhos de quem sofre a “lavagem cerebral” praticada pela imprensa.

 

3. O poder da designação

 

Ao caracterizar de terrorista-suicida alguém que sacrifica sua própria vida em prol de uma causa (qualquer que seja), a imprensa não está apenas se referindo à pessoa que pratica tal ato de proporções incomuns. Ela está emitindo uma opinião a respeito da mesma. Há, pois um julgamento de valores, disfarçado de um ato de referência neutra. E, é justamente por estar camuflado como um simples ato referencial que tais descrições acabam exercendo tamanha influencia sobre o leitor do jornal. À media em que o leitor vai se acostumando ao rótulo, ele deixa de perceber que a descrição não passa de uma opinião avaliativa. Como todas as opiniões avaliativas, esta também comporta um outro lado. Assim, os mesmos indivíduos que são chamados de “homens-bomba” e “terroristas-suicidas” pela imprensa ocidental são lembrados como “mártires” e “soldados da guerra santa” pela imprensa árabe.   

                Convém frisar que o nosso intuito aqui não é perguntar qual dos dois lados tem a razão. O objetivo das afirmações no parágrafo anterior foi o de demonstrar que tanto um quanto outro é passível de contestação. O perigo está no fato de que o leitor ingênuo ou desavisado tende a confundir descrição com termo referencial, opinião com fato consumado. È nisso que reside o maior perigo.

 

NOTA:

 

Algumas das idéias veiculadas neste trabalho são oriundas de um projeto de pesquisa em andamento, financiado pelo CNPq (Nº 306151/88-0). Gostaria de registrar meu agradecimento a Alice Cunha de Freitas pela revisão do português.

 

RESUMO: Argumento, neste trabalho, que a designação, isto é, o processo pelo qual propiciamos a um determinado objeto, quer real quer imaginário, um ‘endereço e um nome’, fazendo com que o objeto seja colocado em destaque e tornado disponível para maiores discussões, deve ser entendida como o primeiro passo em direção à manipulação ideológica da atitude do leitor em relação ao objeto nomeado e discutido. Destaco, portanto, a importância de examinar as estratégias de designação ou nomeação, em tentar compreender o papel da mídia na disseminação de informações ideologicamente dirigida.

 

PALAVRAS CHAVE:  mídia – política – identidade lingüística – designação – referência

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CHOMSKY, N. (1997). ‘What makes mainstream media mainstream: From a talk at Z Media Institute in June 1997’. Z magazine. 1997. http://www.lol.shareworld.com/zmag/articles/cho moct97.htm

DEBORD. G. (1967). The Society of the Spectacle. New York: Back & Red.

KAPLAN, D. (1978). ‘Dthat’. In Cole, P. (Org.) Syntax and Semantics Vol. 9. Pragmatics. Nova Iorque: Academic Press. Pp. 221-243.

KRIPKE, S. (1972). “Naming and necessity,” in Davidson, D. and Harman, G. (Orgs.). Semantics of Natural Language,  Dordrecht-Holland: D. Reidel Publishing Company.

PUTNAM, H. (1975). Mind, Language and Reality. Londres: Cambridge University Press.

RAJAGOPALAN, K. (2000). ‘O singular: a pedra no caminho dos teóricos da linguagem’. Cadernos de Estudos Lingüísticos. n º 38. Pp. 79-85.

——— (no prelo). ‘Reference’. Encyclopedia of Linguistics. Chicago, EUA: Fitzroy-Dearborn Publishers.

RUSSELL, B. (1911). ‘Knowledge by acquaintance and knowledge by description.’ Proceedings of  the Aristotelian Society, Vol. 11. Pp. 142-156.

SIMPSON, J. (2000). A Mad World, My Masters. Londres: Macmillan.

ZIZEK, S. (2001). ‘Bem vindo ao deserto do real’. Folha de São Paulo. Mais. 23 de setembro de 2001. pp. 4-7.